O USO RITUALÍSTICO DO RAPÉ (2ª edição, 2021)


Por Vinícius Casagrande Fornasier – Kumahu (Yawanawa)



      Este artigo é um breve apanhado do conhecimento da medicina do rapé e seu uso terapêutico e espiritual. Muitas informações citadas neste texto, são relatos das minhas experiências, juntamente com as experiências de nosso grupo de estudo: Centro Espiritual Sol da Manhã e Espaço Rapa Nuy, de Porto Alegre - RS, Brasil. Percebemos a importância de esclarecer, orientar e conscientizar a toda pessoa que faz uso desta poderosa medicina de cura, de forma a não cair na banalização ou, mau uso.
O Espaço Rapa Nuy, em Porto Alegre - RS, é um centro terapêutico e escola de consciência. Principalmente entre os anos de 2009 a 2014, realizamos inúmeras vivências e parcerias, com  povos indígenas (com as etnias Huni Kuin e principalmente junto à etnia Yawanawa – ambas localizadas no estado do Acre - Brasil). Destas experiências junto as medicinas da floresta, muito aprendemos e compreendemos; a delicadeza e respeito a este caminho.

O que é rapé?

A palavra rapé vem do francês “râper” (raspar). Basicamente, é tabaco moído, raspado ou pilado, inalado ou aspirado via nasal. Até o início do século XX, era bastante comum o uso de rapé no Brasil. Costumava ser vendido em caixinhas (semelhantes às de fósforo) ou estojos. Seu uso, neste caso, não é ligado a rituais (espirituais). O rapé elaborado puramente de tabaco está associado ao tabagismo e pode causar dependência e doenças associadas ao seu uso demasiado. Porém, o rapé utilizado para fins espirituais é composto por outras plantas – neste artigo será enfatizado o uso da cinza da casca de pau pereira (Geissospermum vellosii), utilizado por povos indígenas no norte do Brasil.

O tabaco sob o ponto de vista espiritual

            De maneira espiritual (xamânica ou ritualística), o tabaco é considerado uma planta de poder, sagrada e usada apenas para fins espirituais e/ou religiosos. Dentro de muitas tradições nativas, é considerada como uma planta mestre, também vista como um pai ou avô que contém toda sabedoria ancestral da floresta.
            O tabaco pode ser utilizado dentro dos quatro elementos. O tabaco do fogo é o tabaco queimado em cachimbos (e similares) e apenas baforado, sem tragá-lo. Neste caso é muito utilizado para rezar. Considera-se que a fumaça lançada ao ar carrega a oração até o Grande Espírito (Deus).
Foi através da civilização ou do “homem branco” que o tabaco tomou outra dimensão (viciante, cancerígeno, etc.).  Na maior parte das tradições que fazem uso ritualístico do tabaco, ele jamais é tragado – é considerado um desrespeito com o espírito ancestral desta planta sagrada.
O tabaco d’água é o tabaco preparado pela sua infusão em água (por alguns dias) e inalado via nasal ou oral (de acordo com o ritual). O tabaco da terra é tabaco seco mascado e cuspido (ritual da mascada) e o tabaco do ar é uso ritualístico do rapé (aspirado via nasal). O tabaco ainda é muito utilizado para oferenda (para a terra/Terra e para o fogo), considerado como uma forma de agradecimento ou oração.
Quando o tabaco é utilizado espiritualmente, traz purificação, centramento, transmuta energias negativas em positivas e serve de mensageiro.

O rapé indígena

            No norte do Brasil, povos indígenas usam o rapé há séculos (antes da chegada do homem branco). Algumas etnias, tais como a Huni Kuin – Kaxinawa e a Yawanawa, tem o rapé como uma “medicina” (associada ao uso terapêutico e espiritual).
            O tabaco utilizado para a elaboração do rapé é cultivado (orgânico) pelo próprio povo (e geralmente rezado em todas suas fases: plantio, cultivo, colheita, preparo). O tabaco mais conhecido é do tipo “mói”, que é preparado em corda.
            O rapé neste caso é constituído de tabaco (pilado) e cinza (pau pereira, cumaru, canela, canela de velho, entre outras).
            Para esses povos, o rapé é uma medicina que contém um espírito com grande poder, trazendo curas, proteção e afastando todo tipo de males. Outro ponto a salientar, é que o rapé não é aspirado, mas sim soprado nas vias nasais através de uma espécie de canudo, chamado de “tepi”.  Também pode ser autoaplicado através de um instrumento chamado de “curipe”.



Detalhe do Tepi à esquerda e Kuripe à direita


            No passado (não muito distante), o rapé era utilizado apenas pelo pajé da tribo, para que pudesse se “conectar” ou integrar-se à natureza, podendo identificar males que pudessem atingir seu povo ou então, em rituais de cura, com o propósito de proteção espiritual, identificação da doença e, trazendo o poder do espírito desta medicina para curar.
            Atualmente, há uma maior difusão do uso do rapé para fins ritualísticos, não só nas tribos, mas também pelo Brasil a fora – por associações religiosas, grupos espirituais, terapeutas xamânicos, entre outros. Seu uso é associado ao ritual com Ayahuasca (Hoasca, Uni, Nixi pae, Santo Daime). As etnias Huni Kuin e Yawanawa, tradicionalmente usam o rapé em rituais com ayahuasca. Outro fato é que estas etnias há alguns anos, vem difundindo suas tradições, não só pelo Brasil, mas pelo mundo a fora. Deste modo, vários grupos religiosos que fazem uso ritual da ayahuasca (até mesmo o Santo Daime), vêm introduzindo o rapé em seus cerimoniais.
            O rapé e a ayahuasca possuem uma grande intimidade. A união destas energias gera maior luz, curas e alinhamento espiritual. 
            Particularmente me coloco humilde, vejo a história e me coloco em meu lugar. O rapé até poucas décadas atrás, era de uso exclusivo dos pajés. Quando alguém necessitava ser tratado, o pajé se autoaplicava o rapé então, realizava o atendimento na pessoa (que não recebia o rapé). Atualmente há uma grande distorção sobre o uso do rapé e suas reais funções e benefícios. Por isso, me coloco como aprendiz. Aprendi a respeitar muito este caminho e fazer um uso consciente desta medicina.

O rapé Yawanawa

            Nesta tradição, o rapé é elaborado tradicionalmente com as cinzas de cascas de pau pereira, chamado de “tsunu”. Há também, opcionalmente, a adição de pequenas quantidades de canela.
            De acordo com Almeida (et al., 2007), o pau pereira (Geissospermum vellosii) está entre as plantas mais estudadas pela medicina popular (há indícios para tratamento de Alzheimer e comprovada ação analgésica), utilizado desde meados do século XIX para tratar malária, má digestão, inapetência, febres, tonturas, prisão de ventre, entre outras. Trata-se de um poderoso alcaloide (geissospermina, entre outros em menor quantidade) que é extraído das cascas do pau pereira. As primeiras publicações médicas sobre o alcaloide surgiram em 1837, no Brasil. Atualmente existem vários estudos a respeito o uso medicinal deste alcaloide.
            O feitio do rapé é simples, porém, não deixa ser um ritual. Primeiramente deve-se ter tabaco seco e cinza de tsunú. O principal ritual da elaboração é o pilar (pilão) do tabaco. A pessoa que realiza este processo deve estar concentrada (em silêncio), pois, considera-se que grande parte da força do rapé vem da intenção de quem pilou. O feitio pode ser cerimonial, com cantos e orações. O tabaco pilado é peneirado e, então, surge a alquimia: a mistura da cinza com o tabaco. A proporção é variável, definida muito intuitivamente.
            Para os Yawanawa, o rapé tem o poder de expulsar qualquer malefício que a pessoa possua. Serve também para auxiliar em processos de cura, protegendo e integrando o curandeiro às forças da natureza. O seu uso é muito associado aos rituais cerimoniais com Uni e também com o Sepá (resina natural que é queimada – usada como defumação, com grande poder em trabalhos de cura).

Rituais com o rapé

            O rapé usado em rituais, chamado de “roda de cura” é um cerimonial voltado a um uso terapêutico do rapé. A cerimônia pode ser constituída de vários rituais, tais como defumações, orações, cantos e a aplicação do rapé (usa-se a expressão “tomar rapé”).
            Para pessoas inexperientes, o rapé pode causar uma forte impressão a respeito (assustar-se com a sensação ou vivenciar uma forte experiência) e por isso, cabe a quem está aplicando e conduzindo o ritual, explicar e proporcionar um ambiente seguro para que a pessoa possa realmente se entregar ao processo. Além disso, para uma primeira vez, geralmente é aplicado doses menores e sopros moderados. Importante salientar que uma pessoa não deve ser obrigada a receber o rapé, se assim escolher! Também você tem o direito de escolher uma dose suave. Para pessoas experientes com esta medicina, a aplicação pode ser muito variada, de acordo com as necessidades e objetivos.
            O rapé é uma medicina basicamente de conexão. Trata-se de um poderoso alterador de consciência (enteógeno). Saliento isto, pois o rapé, espiritualmente falando, tem o poder de abrir inúmeros portais e a pessoa pode acessar diferentes dimensões. Por esse motivo, é imprescindível estar em ambiente seguro e próprio para tal experiência. Os cantos, assim como em rituais com ayahuasca, tem um papel muito importante para conduzir a pessoa a um caminho de cura e iluminação.
             Só tome rapé de alguém que conheça e confie. Você não pode se sentir na obrigação de receber e tão pouco de encarar olho a olho durante o sopro. Nunca se permita tomar rapé com alguém que possa ter intenções manipulativas (todos os tipos, sexuais especialmente) e vice-versa. Saliento isto pelo número de casos que chegaram até nós. Mal uso do rapé adoece e pode prejudicar muito a vida de uma pessoa!
            Rapé é coisa séria! O uso desta medicina deve sempre estar alinhado a um propósito espiritual. É preciso estar concentrado, em oração, procurando a firmeza, juntamente à entrega, para poder receber a cura ou a instrução espiritual.

Qualquer pessoa pode aplicar rapé?

            
      Não é qualquer pessoa que pode aplicar (soprar) rapé. Existe a diferença entre se autoaplicar e aplicar em outra pessoa. A autoaplicação é voltada às pessoas que fazem estudo com o rapé e, neste caso, é fundamental para que a pessoa possa identificar o próprio poder pessoal junto a esta medicina. Recomenda-se a autoaplicação para quem já passou por um ritual com rapé e possua consciência e conhecimento desta poderosa medicina. Para os experientes, a autoaplicação é feita antes de aplicar em outras pessoas (como forma de estar conectado e protegido).
            Dentro das tradições indígenas, a pessoa que quer aplicar rapé precisa fazer um estudo profundo, com aplicações fortes de rapé (para poder conhecer profundamente a medicina), seguido de uma dieta especial, onde, basicamente, é retirado o açúcar (inclusive frutas) e as relações sexuais (entre outros como carne vermelha e sal).
Segundo as tradições, o açúcar gera uma falsa energia (como uma droga) e por ser estimulante, deixa a pessoa menos sensível (portanto gera uma dificuldade de conexão espiritual), além de estimular a energia sexual, durante o período de estudo (que é de no mínimo 15 dias e, podendo se estender a um mês ou mais). Reter a energia sexual durante o estudo é fundamental e, uma vez que isso seja quebrado, o estudo precisa ser recomeçado do zero. 
Dieta não é brincadeira! Não é algo que você faz via internet, à distância. É realizado presencialmente! Um estudo sério e responsável é feito por alguém com muitos anos de experiência com esta medicina (e os anos, nem sempre querem dizer alguma coisa... - ouvi um ditado assim: "mais vale um charlatão experiente, do que um novato que se crê iluminado").  Quando é iniciado este estudo, normalmente é aplicado uma grande quantidade de rapé - isto pode ser um processo de horas até finalizar - requer cuidados. Você sempre deverá ter a opção de não continuar - ninguém é obrigado a nada. Mas no momento que você escolher fazer um estudo destes - deve ser responsável, disciplinado e dar o máximo de você. É fundamental que este estudo tenha toda esta orientação e muito mais. 
Durante o período de estudo a pessoa usa o rapé diariamente, orando e pedindo a instrução e a benção do espírito desta medicina. O processo de estudo é também uma cura. Para uma pessoa que vive de forma mundana, esta dieta pode ser um real caos, gerando uma grande mudança em sua vida. Por isso, é importante que a pessoa esteja sob a orientação de uma pessoa experiente. Um primeiro estudo serve para conhecer e conectar com a medicina e não habilita você estar aplicando em outras pessoas. É preciso tempo de experiência, humildade e amadurecimento junto ao caminho e às medicinas, para que o sopro seja pureza e amor - para que a força da medicina reconheça o caminho e, traga luz ao que necessita. 
            É fundamental compreender que o motivo principal do estudo para aplicação de rapé é por algo muito simples: quando a pessoa assopra o rapé em outra pessoa há uma forte troca energética entre ambas (principalmente para quem recebe) e então pergunto: que tipo de energia a pessoa está recebendo?
            A medicina do rapé e baseada na intenção. Segundo as tradições indígenas, o rapé pode tanto curar como gerar doença e males espirituais, tudo depende da intenção de quem o usa e/ou aplica. Aplicar rapé é uma grande responsabilidade. Devemos conhecer e confiar plenamente em quem irá nos aplicar, pois estamos dando nossa vida nas mãos de outra pessoa. Quem aplica também recebe a energia da pessoa que recebe e, neste caso, não tendo um prévio estudo com o rapé, poderá estar recebendo energias densas que podem gerar inúmeros males e até doenças. Portanto, os estudos (dietas) são fundamentais para ancorar e compreender a poderosa energia do rapé. Somente pessoas experientes (que possam orientar e ancorar) podem passar este estudo a alguém.

 Autoaplicação do Rapé

            A autoaplicação do rapé é uma maneira de estudar o rapé. É preciso compreender o momento e local certo, avaliando a real necessidade de você fazer o uso da medicina. A autoaplicação permite que faça mais de um sopro por narina. Você serve a medicina em mão. Sopra uma pequena quantidade em cada uma das narinas. Repete, até usar a medicina servida. Assim, cada pessoa vai desenvolver sua própria força de sopro e encontrar seus limites. Se você acha agradável e tranquilo o seu sopro, provavelmente está soprando muito fraco. Encontro o ponto onde você sente de fato a força da medicina. Se você consegue fazer limpeza (vômito), com o seu sopro, então pode encontrar também o ponto de conexão, de meditação e qualquer outra intenção que colocar no seu estudo. 
            O mais importante é o respeito e a delicadeza com você e com a medicina. Reze com amor e preste muita atenção para que não te torne uma bengala na sua vida. Saiba que você pode dar conta das energias, da sua psique, de muitas outras formas. Por isso, respire, se harmonize, tome um banho, acenda um incenso, cante e reze e se mesmo assim for necessário (sem mentiras e desculpas), então aplique a medicina. 
            Minhas melhores experiências e conexões com o rapé sempre foram após períodos de pausa. Quando você desintoxica o corpo e faz uso apenas quando realmente há propósito, então a medicina reconhece e lhe oferta grandes presentes, além claro, de uma poderosa força! 

Rapé em boca

        Está forma de uso ganhou muitos usuários, mundo a fora. Consiste em você colocar uma quantidade de rapé (próxima a quantidade que normalmente se autoaplica em sopro), entre o lábio e a gengiva inferior. Assim, a pessoa puxa o lábio e com a outra mão coloca a medicina. Esta é uma forma que os pajés e rezadores utilizam, muito eventualmente, para alguma reza que exija grande concentração e poder.
              O rapé soprado é a força do vento. A rapé na boca é a força da terra. Assim ele ajuda a focar e concentrar, pode trazer aterramento ou conexão. Isto foi nos passado pelos povos indígenas, como algo muito sagrado e, que só era rezado para momentos muito específicos, onde a força e o espírito da medicina, auxiliam na coocriação da intenção rezada, evitando desvios e interferências (protege). É feito em silêncio e concentração. A medida que a saliva aumenta é cuspido. Não deve ser engolido. A medida que vai cuspindo o rapé, vai sendo eliminado até cessar a força, podendo lavar a boca após. Esta concentração dura em média de 10 a 30 minutos. O ensino foi claro: uso eventual, em momentos que exijam muita concentração de energia, no rezo realizado.
            Até 2013 ninguém (das minhas relações) fazia este tipo de uso. Contudo, isto tomou proporções preocupantes. Esse tipo de uso, ativa uma memória inconsciente com a fase bucal (se foi amamentado ou não e toda esta relação na fase de infância). Assim, o  rapé em boca pode causar uma forte dependência, não só química, mas emocional.  Assim, há muitos que usam várias vezes ao dia, para muitas coisas: para focar nos estudos, para dirigir seu carro, para limpar a casa, para conversar com alguém e tudo que você imaginar... É grave! A banalização e mau uso da medicina, tomou grandes proporções.
            Poucos são os benefícios que está forma de uso traz. Ele ajuda a acalmar e sem dúvida, pode auxiliar na ansiedade e depressão - mas com uso pontual e focado, pois não vai necessariamente curar. Pode ser um grande guia nos sonhos, mas também pode causar pesadelos. Ajuda a soltar o intestino, porém o intestino fica condicionado ao uso. Quando aos malefícios, posso citar: inflamação na gengiva, queimação e descamação da mucosa boca (a longo prazo câncer de boca), secura na garganta, inflamação de laringe e cordas vocais, azia estomacal, dores nas articulações, fraqueza e moleza corporal. Pode causar insônia e sono não reparador.  Prostração geral. Misantropia, comportamento antissocial. Diminuição do apetite. Não é recomendado para auxiliar em doenças em geral, pois o uso demasiado do rapé em boca, diminui gradativamente a energia vital. 
         Se você nunca experimentou - em minha opinião: que bom! Continue sem! Se você usa várias vezes ao dia, olhe com carinho para isso, busque ajuda se necessário. Uma forma de desintoxicação é uma dieta após aplicação de kapum (vacina do sapo). Busca auxilio terapêutico. É preciso consciência, amor e respeito, a si mesmo e com a medicina. 

Sintomas e benefícios do rapé

            A experiência com o rapé é muito intensa. A pessoa vivência uma série de reações físicas, psicológicas e espirituais em pouquíssimo tempo.
            Os sintomas diretos da aplicação forte de rapé são: forte ardência de toda face nasal, sensação de queimação nas cavidades, forte pressão na cabeça, tontura, vertigem, acelera os batimentos cardíacos, baixa pressão arterial. Pode provocar falta de ar, náuseas, vômitos, sensação de paralisação corporal, entre outras. Porém, isto é o extremo, pois um sopro moderado pode ser bastante tranquilo, apenas sentido leve tontura e relaxamento do corpo.
            O rapé deve ser soprado em ambas às cavidades nasais. Quando iniciamos um trabalho cerimonial, destacamos muito esta informação. Cada uma das faces nasais representa um meridiano do corpo. O lado direito é associado ao masculino (racional) e o lado esquerdo o feminino (intuitivo). A pessoa que vai receber um sopro pela primeira vez deve estar ciente disto. Algumas experiências que tivemos, demonstraram que a pessoa que não se propõe receber o segundo sopro (medo), acaba entrando em um processo tão ou mais forte que o habitual. Isso basicamente se deve pelo fato da pessoa não se entregar ao processo de cura e/ou também rejeitar a medicina, o que, de certa forma é como rejeitar o espírito do rapé.
            O rapé, psicologicamente falando, trata principalmente dos medos. Uma aplicação forte de cura pode levar a pessoa a vivenciar sua própria sombra e acessar os medos mais obscuros. Inúmeras experiências comprovaram a eficiência no trato de depressões, medos obsessivos, insônia, ansiedade, entre outros.
            Nos anos de experiência com rapé pude compreender (esta é minha forma de ver - não quer dizer que tenha que ser assim), que qualquer intenção de tornar o uso do rapé terapêutico, deve envolver alguns fatores em conjunto: 
    - Ambiente: o local tem muita importância. Teve ser arejado, ter possibilidade de ter fogo para rezar, ter defumações e outros recursos como a disponibilidade de banho após o trabalho. Se for em meio à natureza é o ideal. Deve ser um ambiente para tal, para que haja segurança física e espiritual.
    - Propósito: há muitas possibilidades. Um real trabalho terapêutico pode requerer auxílio (vejo como importante quando o condutor irá rezar e cantar); pode requerer algumas horas de disponibilidade de ambos (2 a 4 horas); assim a medicina, quando bem rezada, trará o que foi pedido. Gosto de dizer: presta atenção no que reza e seja humilde: "que seja na dose e na medida certa do que posso dar (ou receber)".
   - Equilíbrio de troca: um trabalho sério e responsável é bem cobrado (ou são feitas trocas justas). Olhe pelo ponto de vista contrário: você realiza o seu trabalho gratuitamente, dia após dia?  É preciso respeitar a lei universal da reciprocidade. O que você dá é o que você recebe.
    - Tempo de experiência: eu tive um caso em 2013, onde a pessoa tomou o rapé pela primeira vez - veio de muito longe para ter sua experiência -  tinha um propósito profundo de cura. O primeiro momento entre conversar e explicar tomou uma hora. A experiência com o rapé (aplicado em quantidade pequena) durou 3h! Ela saiu somente após estar em condições para tal, 5h após sua chegada. Poucas vezes me coloquei a disposição para trabalhos assim. Pode ser interessante para quem já conhece a medicina e sabe o que pode passar. Uma primeira vez requer muito zelo e delicadeza. Trabalhos cerimoniais são mais indicados (de meu ponto de vista).

            BENEFÍCIOS:

            Há indícios que a cinza de pau pereira neutralize parte da nicotina do tabaco, o que torna o rapé um meio de curar tabagistas. Comprovadamente pude conhecer várias pessoas que largaram o vício (cigarro) após fazer ritual com uso de rapé. Particularmente venho estudando o rapé há algum tempo e, costumam me perguntar: “rapé vicia?” A resposta é simples: o uso ritualístico (dentro do sagrado – espiritual) do rapé não vicia. Porém, mesmo este rapé com cinza de tsunu pode viciar àqueles quem fazem o mau uso (usam rapé sem um propósito espiritual) desta medicina, com uso frequente e sem pausas.
            Sob a óptica espiritual, o rapé pode expandir muito a consciência e a mediunidade. Pessoas com forte mediunidade vivenciam intensas experiências com o rapé, recebendo com clareza informações, orientações e curas. Para quem trabalha com esta medicina, ela é excelente para trazer o centramento, conexão, instruções para o trabalho espiritual e, além disto, protege nosso corpo e espírito. 
            O rapé também é muito eficiente para tratos do sistema respiratório e digestivo. Eu mesmo curei minha sinusite e inúmeras pessoas já se curaram de renites, tiveram maior imunidade contra resfriados e outras disfunções respiratórias (usado de maneira adequada). O rapé é muito poderoso para tratar o sistema digestivo. Energeticamente, ele atinge de forma direta o plexo solar (região do estômago – também associada aos medos, ansiedade, etc.), fazendo com que a pessoa arrote ou até mesmo vomite, eliminando energias densas desta região. É também muito eficaz para tratar a constipação (efeito imediato). O rapé ainda traz curas rápidas de dores (cabeça ou no corpo), desperta o corpo (quando sonolento e preguiçoso), traz relaxamento, e sensação de frio (baixa a pressão).
O povo Yawanawa tem como costume tomar rapé no final da tarde, após o trabalho para resfriar o corpo e relaxar, seguido de um banho de rio. O rapé tem energia predominante da terra. Por ser uma energia densa, quando estamos sob o efeito forte do rapé, a forma mais simples e rápida de diminuir o efeito é banhar-se com água fria.

Recomendações para quem faz o uso terapêutico/espiritual do Rapé

            O rapé é uma medicina sagrada – um espírito poderoso da floresta e, deve ser tratado como tal. É uma medicina muito forte que como já disse anteriormente, pode trazer o bem ou o mau, tudo depende de como é utilizado.
                  Não se toma rapé a toda hora. Para quem estuda o rapé (normalmente são períodos curtos, de 7 a 45 dias), recomenda-se usá-lo de manhã (antes do café da manhã), final de tarde (após trabalho) e a noite, antes de dormir (para trazer bons sonhos e ter uma noite tranquila de sono). Em trabalhos cerimoniais, podem-se tomar vários sopros, de acordo com a necessidade e o propósito.
            Não é recomendado tomar rapé sob o sol (principalmente nos horários em que o sol está mais intenso). A força do rapé é acentuada nesta situação (além de baixar a pressão arterial) e, além disto, é dito que é como desafiar o espírito do Sol.
            O rapé usado muito frequentemente e sem pausas (meses ou anos), causa moleza, fraqueza, dores nas articulações e sim - VICIA. Além disso causa outros processos inflamatórios, como rinite e faringite. Pode prejudicar o sono (quando por excessivos períodos de uso); sono não reparador. Pode causar mau humor, ansiedade e depressão. Todos estes sintomas também podem ser curados - mas como saliento: tudo pendente da dose e medida certa. Se você faz uso eventual ou apenas em cerimônias ótimo! Se faz uma única aplicação diária, atenção! Se faz uso repetidas vezes no dia, por anos, alerta! Olhe para isso e avalie com coerência.  
                Por isso, mesmo para quem estuda, é importante fazer pausas durante algumas semanas e fazer tratamento com kapun (vacina do sapo), seguida de dieta (sem açúcar, sexo e rapé por 7 a 15 dias). Segundo os Yawanawa, o kapun limpa toda a energia do rapé e renova a energia corporal. 
                Conto a você uma breve  vivência  que tive em janeiro de 2013,   com o falecido pajé Yawanawa, Tatá, com seus 100 anos de experiência: estávamos com a comitiva que acompanhou o pajé até nosso espaço, em Porto Alegre- RS, Brasil. Então num momento da manhã estávamos todos reunidos no terreiro para tomar rapé. Então o pajé Tatá disse: "vão tomar rapé por quê? Vão curar alguém? Alguém aqui é pajé? Então se ninguém é pajé e ninguém vai receber uma cura, vocês são apenas cheiradores de tabaco!" E ainda somou, em sua humildade: "eu não sou pajé, sou só cheirador de tabaco". E deu uma risada!  Por este motivo, como citei anteriormente: humildemente me coloco em meu lugar, olhando a história desta medicina e procuro fazer o melhor, para honrar e respeitar este caminho, que chegou até mim.
                         Deve-se evitar usar e/ou aplicar rapé em público (que não conhece tal prática). Segundo os Huni Kuin, a pessoa que está aplicando pode contrair algum tipo de doença ou mal, devido à energia gerada por quem observa. Em minha opinião, o momento de toma deve ter sua ritualística, por mais simples que seja. É bom estar tranquilo, em ambiente calmo e silencioso, se possível na natureza ou, no seu recanto espiritual, na sua casa. Procure inicialmente se harmonizar, respirando, principalmente. Use alguma defumação, incenso ou spray terapêutico para limpar o campo de energia. Então reze e silencie ao máximo sua mente, respirando e focando no propósito e intenção de tomar o rapé. Então sirva, reze e aplique. Viva o presente momento, sem pressa, sem euforia, medo ou desespero - você está na presença de um espírito da floresta! Seja respeitoso com você e com a medicina. Se realiza isso com amor e veracidade, então esse espírito te guiará para o melhor - inclusive ao momento de parar o seu uso!
            É dito por ambas às etnias que aplicações muito fracas ou muito fortes não são boas nem para quem aplica nem para quem recebe. Rapé é medicina de cura; se tomar deve ser forte o suficiente para tal, mas não mais forte que o necessário (por isso a importância do estudo e experiência com o rapé).
            Não se recomenda emprestar instrumentos de aplicação (principalmente o curipe – aplicação pessoal), a não ser para pessoas que trocam rapé com você e que você confie plenamente.
            Só tome rapé de quem você conhece e confie. Evite também receber ou se autoaplicar rapé de procedência desconhecida (quem produz e o rezo que realizou nesta medicina, tem muita influência). Não olhe olho a olho no momento da aplicação (especialmente se disserem que você tem que fazer isso). Não tome rapé de alguém com intenções sobre você e vice-versa. 
        Em tempos de pandemia (2020/2021) é importante a clareza: pode haver transmissão/contaminação através de um sopro ou da utilização de instrumento de terceiro. Rapé não cura o Covid-19. Outras formas virais, transmissíveis pelo ar, também podem ser transmitidas em um sopro.
            Essas são apenas algumas recomendações importantes para quem quer ter boas experiências com a medicina do rapé. Desfrute com consciência e sempre lembrando que o rapé é uma medicina de pajé (de cura) e, portanto, deve ser utilizada com o devido respeito.

             HAUX!
             Vinícius Casagrande Fornasier

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Márcia Rosa de; LIMA, Josélia Alencar; et al.PEREIRINHA – O primeiro alcaloide isolado no Brasil. Revista Fotoquímica – Ciência Hoje, Rio de Janeiro, RJ. 2007, 6 pag.

TAVARES, Juliana de Abreu Werner. AVALIAÇÃO DA ATIVIDADE ANTINOCICEPTIVA DO EXTRATO BRUTO, DAS FRAÇÕES DOS COMPOSTOS OBTIDOS DE Geissospermum vellosii. Dissertação de Mestrado, programa de pós graduação da UFSM. Santa Maria, RS, 2008. 78 pag.

VINNYA, Aldaiso Luiz. Ochoa, Maria Luiza Pinedo. Teixeira, Gleyson de Araújo. (Orgs.) Costumes e Tradições do Povo Yawanawá. Comissão Pró-Índio do Acre / Organização dos Professores Indígenas do Acre. – Rio Branco, 2006. 180p.

http://rapesagrado.blogspot.com.br  Um pouco sobre rapé

http://www.youtube.com/watch?v=5jsacYiOPlM O Rapé é coisa séria - Histórias de rapés II

http://www.youtube.com/watch?v=E9Jp3s5_YK4 Viver -  Rapé

Postagens mais visitadas deste blog

O sexo transcendendo as dimensões de consciência

Liberte-se do espelhamento nos relacionamentos